Carta para Luiza

Liu Gerbasi
4 min readNov 11, 2020

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ilustração por Shaun Tan

“tudo isso parece frescura, crise passageira

mas eu te pergunto

seu gênero assombra teus pensamentos

com que frequência?

porque o meu me assombra todos os dias

já virou rotina sentir disforia

ouvir pronomes que não são meus

é parte da minha rotina

lamentar por não ter nascido

menino

ou

menina

estou sofrendo por ter nascido

tão humano

que gênero nenhum me domina”

(Noah Nogueira)

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São Paulo, 07/08/2020

Dia nublado. Sabe, gosto de escrever cartas em dias assim. Nunca perdi o costume de escrever cartas, Luiza. Mas essa aqui, em especial, eu não sei como começar. Então começo confessando que esse começo me acompanha há anos — e quero falar sobre esses anos, em homenagem a nós e em ato de re-existência continuada.

Você sempre soube né? Eu acho que sim. A vida foi a razão e finalmente compreendemos a transgeneridade, a não-binaridade, a androgenia. “Nem menino, nem menina — gênero nenhum nos domina”. Nunca dominou, mesmo quando éramos aquela criança que gostava de performar masculinidade em sua expressão de gênero, sempre impedida ou questionada por isso. Éramos um recorte em baixa resolução da nossa própria existência.

Foi difícil abrir a boca. Lembra? Foi difícil, aos 15 anos recém feitos, se sentir sozinho numa guerra contra um inimigo invisível. Mas demos o primeiro passo e este nos acompanha até hoje. Lembra aquele dia em que encostar os pés no chão te fez entender que você não morreria, mesmo com a rejeição do pai e da mãe? Eu lembro como se fosse hoje. Fincamos os pés no tapete que ficava ao lado da cama e confiamos a eles o peso do corpo, antes cedido à inércia, entendendo que ambos trabalhariam juntos para sempre.

De lá para cá foram tantos dias, Luiza. Por tantos outros motivos achamos que a vida se encerraria — nos entregamos aos excessos de substâncias tóxicas, brigamos com a comida, nos colocamos em situações de extremo risco e adotamos facas para aliviar a dor latente que era se olhar no espelho. Por tanto tempo nos faltou o medo da morte.

Lembro que custamos a sair do fundo daquele poço, mas ao escalar até a superfície nunca mais voltamos ao mesmo lugar. Segredos, mentiras, muito choro, dor de amor, dor por falta do mesmo. Antes família-porto-seguro, e então vimos tudo ruir, era mesmo um poço fundo e escuro. Mas também vimos tudo se reconstruir ano após ano. Hoje, aceito por quase todos que importam, já sinto amor pela vida. É, chegamos a um lugar bem interessante.

Foi nos olhos do afeto que recuperaste a força para continuar esse caminho-história. Agora, sentado aqui te escrevendo, sinto na sola dos pés um pertencimento à vida, um amor que existe por sabe-se lá o que, que teme a morte por gostar da vida — mesmo não temendo seu fim.

O outro sempre foi pra ti um espelho distorcido, este ainda preciso ressignificar — eles não entendem, ainda acham que somos o que nos designaram a ser por tanto tempo. Foi difícil aprender que para alguns ainda estou associado aos teus vestidos e lacinhos da infância, preso a uma sentença me dada ao nascer: “parabéns, é uma menina”. Outros já digeriram tudo de primeira, entendendo que quem eu sou tem sim a ver com o que fomos, mas só enquanto detalhe de continuidade de cena. Enfim, tudo o que fomos me tornou o que sou hoje.

Demorei um tanto de tempo para te aceitar e te entender como parte de minha história, confesso. Eu deveria ter vindo aqui antes, nestas linhas, mas ao mesmo tempo acredito que a evolução das coisas têm um tempo próprio. Dentro das possibilidades e fatos, reconheço sua existência enquanto processo. Você me buscou incessantemente e, ao me encontrar, pôde, enfim, descansar. A metamorfose foi como um caminhar com comida e água contadas.

Em mim moramos nós, tudo o que construímos e tudo o que você permitiu que me permeasse antes de, enfim, me entregar a mim. Tenho muito a agradecer-te. Te agradeço principalmente por ter aguentado firme minha “ausência”, mesmo sem saber que esperava pela presença. Agradeço a força em trocar de pele tão constantemente, a destreza com que escolheu nossos sapatos e caminhos. Te agradeço por me permitir que agora eu viva inteiro, com os mesmos pés, aqueles que nos convenceram de ainda haver caminho pela frente, estruturando um corpo mais forte e essencial.

A morte do antes que nos fez viver em mim foi a sua descoberta mais linda. Fui resultado da tua coragem em desvestir as possibilidades que nos foram impostas por tanto tempo. Sou porque você foi. Sou porque você não é mais.

Luiza, mesmo dividindo o corpo com tuas memórias, venho por meio desta pedir e deixar que você se permita ir. Assino aqui um desfecho, uma continuidade pós transição. Na despedida mora a ida — ir para não ficar, ir para que eu continue contando nossa história. Foi em 1993 que começamos essa carta escrita por duas mãos, depois quatro e agora duas de novo, encontrando seu final em vida. Te guardo no bolso, para sempre. Se cuida daí que eu nos cuido daqui.

Com carinho,

Liu

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